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Uma Apologia às Cidades "Provincianas".


Um certo 'quê' de pitoresco chama atenção acerca das cidades provincianas, mas, antes de prosseguir, é preciso fazer um breve esclarecimento terminológico para evitar posteriores embaraços.  Provincianas, sim, não como se adotou o termo com o passar dos anos (inculturado, atrasado, superado, de mal gosto, entre outros tantos adjetivos no mínimo ofensivos e, certamente, equivocados), mas provincianas, enquanto seu termo lato, province do latim, pro - "em nome de", vincere - (vencer), de forma literal, seria um território menor submetido a outro que o governava - pequenas cidades, territórios, condados. A versatilidade do termo é apropriada, pois ele ilustra com exatidão o simbolismo que carregam as pequenas cidades de interior. 

Longes de toda a grande urbe tecnocrática, dos seus ruídos estrondosos, trânsitos intermináveis e velocidade cotidiana humanamente atroz, é possível encontrar nas pequenas cidades, um conforto restaurador, digno de um retorno ao lar - e por que não dizer, de si mesmo? Onde é possível ao homem reencontrar uma calmaria primitiva e reconfortante, daquela digna de comunidades medievais, nas quais ele e a natureza detinham um acordo direto - a natureza oferecia-lhe o sustento e ele a cultivava.

Grande parte das pequenas cidades ainda conservam qualidades que são próprias à providência de certas carências humanas, a necessidade de continuidade, de possuir raízes, ser parte de um povo, conservar preceitos específicos e deter o benefício da previsibilidade - não uma previsibilidade rotineiramente mecanicista, como ocorrem nas grandes cidades, mas conspícua, fluida, daquela que surge na certeza de que durante a primavera virão as flores, e no outono elas certamente cairão; dessas regras que intuem o movimento natural das coisas e se estendem à vivência cotidiana, onde dois e dois continuam sendo quatro, o céu ainda é azul e a justiça (dar a cada um o que lhe é devido) prossegue sendo a mais alta das virtudes¹. Alguns poderiam objetar, mas essas cidades não possuem intrigas, miséria, falta de perspectiva e tantos outros despropósitos? A isso a resposta é autoexplicativa, no movimento natural do mundo, os vícios também integram a existência humana, tal como as virtudes - o que diferencia-se nesse caso é a possibilidade de percebê-los, desnudos e dissecados, manifestos como são, sendo apenas uma analogia precisa para o processo de causalidade - os erros trazem más consequências, tal como as boas ações concebem bons frutos, os indivíduos acabam sendo conhecidos por suas obras e seu legado é construído ainda em vida, através de seus atos costumazes e de sua própria identidade, que é observada, integrada e reafirmada pela comunidade. Por isso, é comum notar nessas cidadelas alguns sujeitos, de forma bastante cômica e um tanto simpática (em determinados casos), ganharem apelidos relacionados ao seu ofício, outros, herdam histórias de família e são conhecidos por filho de "fulana", neto de "ciclana", há ainda aqueles que são batizados depois de um acidente que os mutila ou deixa marcas visíveis no corpo ou por condições congênitas, nos quais tais nomes poderiam ser facilmente ofensivos aos desavisados emotivos da "cidade grande", daí os "Aleijadinhos, Caolhos, Mudinhos" e assim por diante. 

Tal crueza e simplicidade de observar, compreender e assinalar as coisas por si mesmas, sem subterfúgios ou averiguações, dificilmente é compreendida pelos prosélitos do progresso cientificista, tal como Bachelard² que lhe é adepto, e por causa do qual, ele e mais alguns repugnam o dito "senso comum". Esses homens costumam imaginar uma sociedade montada, metricamente elaborada e completamente divorciada do caminho natural - o "senso comum" lhes é tão temido que simples sujeitos levando uma vida pacata, longe de seus questionamentos desconstrutivistas, podem ser uma ameaça a todo o brilhante futuro prometido pelo iluminado progresso técnico-científico. 

Diferentemente, Thomas Paine³ foi justo ao reconhecer que a esfera do comum é na verdade o topo da hierarquia de compreensão. E como poderia não ser? Ora, o tecnicismo moderno cegou os homens para as instâncias mais óbvias. Certos conhecimentos não necessitam de metodologização, de uma carta declarada de quão verídico, saudável ou aceitável são; eles apenas estão lá, para serem apreciados com o auxílio da prudência (virtude do bem querer e bem agir por inclinação à verdade¹), e não se trata aqui da fórmula epistêmica "platônico-kantiana" do conhecimento adquirido através dos sentidos, tratam-se de intuições naturais e de pré-julgamentos acurados, possibilitados graças a uma herança cultural, uma identificação comunitária, um laço de tradição, que, antes de qualquer sistematização, estão mais próximos de acertarem como é, de fato, o funcionamento da realidade. Não? Basta observar, em uma tarde qualquer, nas pequenas cidades, alguns senhores conversando em uma praça qualquer, sem instrução técnica, alguns dos quais nunca chegaram a escrever uma só linha que não o próprio o nome, mas possuem soluções para certas problemáticas sociais que seriam dignas de um diplomata. Ou ainda, é possível ouvir o amontoado de jargões populares, a maioria certamente adquirida de nobres autores - "há mais mistérios entre o céu e a Terra do julga nossa vã filosofia", diz um, convocando um Shakespeare⁴, "não se é tão feliz e nem tão triste quanto se imagina" diz outro, trazendo o velho Conde à mesa⁵, todos os dizeres agregados e perpetuados por gerações, sem que ao menos os tivessem lido diretamente. Poderia julgar-se coincidência, ou mesmo que a experiência e a idade lhe forjaram a consciência - de fato, isso poderia ser observado - mas, olhando mais profundamente, se vê aqui o que poderia ocorrer em qualquer indivíduo, quando utiliza-se de suas faculdades mentais outorgadas por determinadas virtudes em conjunto com uma criação acertadamente enraizada - a respeitabilidade causal (contida naquela hierarquia tão primorosa de Aristóteles⁶), o intuir, mesmo que de forma um pouco obtusa, qual a direção correta das coisas pelas quais agir, pois assume que essa direção específica já estava aqui há muito e possui leis inquebráveis, independente do jogo conceitual que se faça acerca dela, é subordinada a sanções objetivas, próprias da realidade existente. As comunidades provincianas exprimem essa ordem, mesmo que desconheçam tal fato, porque o seu movimento está justamente na constatação de que não precisam conhecê-la para agirem a partir dela. 

Esses processos são impensáveis ao homem da grande cidade, já habituado aos maneirismos do mundo moderno, onde, para cada setor de sua vida há um especialista distinto para averiguar e opinar, e vão desde médicos, psicólogos, psiquiatras a cientistas políticos e sociais, jornalistas, economistas, pseudo-filósofos, entre outros, todos sempre prontos para definir, delimitar e explicar ao homem quem ele é, porque ele é, e como ele, para quê ou a quem, deve agir. Esse indivíduo, no lugar de "encontrar-se" em sua confusa existência, torna-se refém das concepções que lhes dão a definição sobre si mesmo e sobre como ele deve enxergar o mundo, e mais ainda, como deve comunicar-se com o mundo e passar através dele. São impostas uma série de narrativas, às quais o indivíduo se vê obrigado a aceitar, compreendendo que esse é o ápice do entendimento humano e se os "especialistas" dizem, então certamente é correto. E não raro, essas narrativas vão frontalmente contra a noção natural (muitas vezes coerente) que o indivíduo comporta - ele percebe que algo está errado, que tais noções não são compatíveis com a realidade, mas se vê encurralado diante de seu pobre e escasso senso comum, já atrofiado pelo ensino que o fez compreendê-lo como errôneo, preconceituoso e desimportante - passa então, a reprimir ferozmente suas próprias noções e julgamentos, para adestrar-se diante dos conceitos prontos fornecidos pela engenharia social presente.

As cidades provincianas estão a salvo? Infelizmente não, considerando que muitos de seus habitantes tiveram contato com o mundo externo e passaram a "comprar" a ideia de uma tal forma de viver. Além disso, muito da cultura interiorana também tem desfalecido e perdido espaço para os esboços aculturais das grandes cidades, especialmente, considerando que muitos dos antigos moradores que poderiam conservar alguns dos traços tradicionais das pequenas regiões,estão agora no fim de sua vida e os novos fazem questão de abandonar esses traços. 

Há o equívoco de associar desenvolvimento com progressismo, e concluir que todas as cidades precisem obrigatoriamente usufruir de todos os processos tecnológicos, "avanços" sociais e subordinação jurisdicional. As cidades provincianas subsistem por si mesmas, algumas com sua agricultura familiar, o comércio de pequenas lojas e outras formas de trabalho rural, e, apesar de em muito poder auxiliá-la, o universo da cidade grande representa-lhe mais risco do que recompensa, onde o conforto material - na maioria das vezes, nem tão confortável assim e sem alcance à população geral - é pago com a renúncia de si mesmo, de seus costumes ordenados e de sua já debilitada, estabilidade familiar. 

Mesmo as formas mais inusitadas de conservação das províncias, seja nos detalhes da arquitetura das casas, no formato das ruas, na localização das praças, na realização de eventos sociais como aniversários e velórios, representam um simbolismo coeso da vida em seu curso natural. A história ecoa, ainda viva, por meio desses detalhes e se mantém em potência através da vida dos cidadãos dessas cidades, que ainda respeitam costumes necessários para o mínimo de formação individual - gestos como o cumprimento de pessoas nas ruas, o pedir benção aos progenitores, o antigo mas sempre necessário sinal da cruz ao passar diante de uma Igreja, a reverência aos Santos o respeito aos mais velhos - hábitos que, tal como pequenos detalhes arquitetônicos⁷, poderiam parecer inutilidades sem propósito aos menos atentos e entorpecidos,  mas que revigoram, fortificam preceitos e dão sentido de existência ao indivíduo íntegro, provando que a civilidade não está em uma cidade economicamente desenvolvida ou em uma sociedade culturalmente progressista, mas sim, no simbolismo existencial que resulta da compreensão do que é Bem viver, e este, não será encontrado em manuais sociológicos ou artigos acadêmicos modernos, profundamente aterrados por todo tipo de conclusão equívoca sobre a natureza humana, que aliás, nem se creem existir. Antes, será dado pelos costumes virtuosos de um povo que foi ensinado em preceitos direcionados a um bem maior - "o bem comum, exige o bem individual de todas as pessoas - o bem de cada virtude (...) pode relacionar-se com o bem comum, para o qual se orienta a justiça"¹. Tais preceitos, mesmo quando ignorados fazem crer sua função, ao demonstrarem, de forma ostensiva, que ao serem negligenciados incorrem em deformidades no agir e no pensar e por consequência, falhas em todo o resto da formação do indivíduo.

As cidades provincianas permitem essa reflexão, porque, entre todas as comunidades, são as mais próximas de sua origem de criação - a expressão dos valores cristãos em ato, manifestos com a chegada da Igreja aos territórios mais ermos, estabelecendo matrizes e possibilitando o crescimento dessas cidades em torno delas. As comunidades cristãs instruíram uma existência em atitude de cooperação e equilíbrio, vislumbrando um Bem maior, apesar das dificuldades. E, ainda que essas pequenas cidades, de forma análoga à humanidade, comportem falhas, são autênticas e ricas em significado particular, como nenhuma  das outras, afastadas de suas origens, poderiam comportar. 

Por fim, é importante reconhecer, um lugar onde as torres da Igreja ainda fazem sombra sobre as casas, são os mais genuínos de se viver.

 Referências

(1) "As Virtudes Fundamentais" - Josef Pieper.

(2) "A Epistemologia" - Gaston Bachelard.

(3) "Senso Comum" - Thomas Paine.

(4) "Hamlet" - W. Shakespeare.

(5) "Reflexões e Máximas Morais" - Conde de La Rochefoucauld.

(6) "As Categorias" - Aristóteles.

(7) "Beleza" - Roger Scruton.

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