Esse tem sido um dos textos mais difíceis que já escrevi, não por sua complexidade de conteúdo, ou pelo assunto ser inédito e inacessível, mas por se tratar de um assunto particular, dessa de quem vos fala. Fiquei dias a pensar e repensar, e para aqueles que se prestam a essa nobre e ingrata arte de escrever, é bem familiar a sensação, de ter ali um incômodo delineado, mas não manifesto, desses que corrõem a alma por dentro, na espera de que uma brecha se abra para finalmente tornarem-se evidentes. Acredito que o tom intimista e tão particular também seja um dos agravantes, eu não costumo expressar angústias e pesares, ao menos, não de forma tão direta, mas, por se tratar de algo comum a tantos outros que não a mim, sinto-me confrontada a estender mãos fraternas e externalizar os desassossegos que me encerram.
Muito se fala, é verdade, sobre a tal "solidão do homem intelectual", e homem aqui, perdoem-me as mulheres modernas, engloba a todos (como é linda a universalização da palavra falada no bom português). Para alguns, esse lamurio de solidão, é uma mera acepção fantasiosa, fruto de imaturidade e pedantismo, para outros, um mito irreal ou conclusão equivocada de qualquer dos tantos pesares que pesam n'alma desde a queda original, daqueles mal descritos nos "manuais" de pseudo-filósofos pessimistas. Para outros ainda, como a mim, essa tal "solidão" subverte-se em uma realidade crua e incisiva, da qual se tem a certeza que a busca categórica por tantos parâmetros, e tanta "profundidade" e significado no mundo, nos afasta, invariavelmente daqueles que não são assim tão...(perdoem-me a expressão da palavra) obsessivos. É o que dizem afinal - aqueles que fizeram algo de relevante, o fizeram por sua persistência quase patológica.
De fato, não somos melhores que qualquer outro, por estudarmos uma coisinha aqui ou ali. E então, o que nos traz a sensação tão penetrável de que chegamos a, sabe Deus, que lugar e por isso não encontramos compreensão para onde quer que olhemos; apenas lacunas, mistério e displicência? Provavelmente esteja relacionado ao fato de que, à medida que o homem conhece e atribui significado a própria existência, nobres valores o acompanham, à mesma medida que o enaltecimento do significado dos vícios. Nada mais temeroso e pungente, que defrontar-se com a própria miséria e finalmente compreender do que se trata cada inclinação maléfica e torpe de nosso próprio ser. Ao passo que entendemos que, olhar para o sublime é uma promessa, uma analogia (o efeito de conhecer através de outro, não em si mesmo), uma nebulosa presença distante que só podemos alcançar nos apegando a tudo que exprime minimamente a semelhança com o Bem Maior, seja ela em atos, através da beleza de obras de arte, na estética humana, na ordem perfeita da natureza, ou mesmo na expressão da racionalidade humana (o mais próximo a essência divina), através de tantas obras escritas e criadas. Mas, nada disso de fato explica completamente o porquê de existir essa tal "solidão", que não é, de modo algum, exclusiva dos entusiastas do conhecimento.
Qualquer um que viva em sociedade já se deparou com o descontentamento de tentar vincular-se de forma estreita a outro indivíduo e perceber que esse sujeito não compreende ou sofre das mesmas inquietações internas. É um agridoce, que justificamos como sendo um bem, que poderá (ou não) levar-nos a reflexões importantes que não seriam feitas em conjunto com outros; mas, ao mesmo tempo, é um amargor, que atira-nos em um mar de dúvidas, estou eu ficando louco?
Porquê, como híbridos de homens e feras, participamos dos dois mundos, aquele objetivamente prático e trivial e outro, completamente taciturno, sem o qual, a maioria das pessoas bem viveria (e bem vive), mas do qual somos escravos confessos. Naturalmente, como humanos, necessitamos por vezes de companhia, de dialogar e conectar-mo-nos com outro que não nosso próprio reflexo para validar nossa sanidade. É justamente nessa busca, trasmitificada no mito de Sísifo, que nós adentramos um universo quase paralelo e inescrutável de existência, onde confiar em si mesmo e nos próprios julgamentos constantemente não parece ser uma boa opção, mas olhar para o outro e perceber aquilo que ele não alcança, parece ainda mais estarrecedor.
Alguns encontram amigos, com os quais conseguem dividir as próprias aflições e angústias, mas não raro, tais compreensões vão até certo ponto, outros, escondem as mais profundas, por entenderem que determinadas aflições não seriam compreendidas pelo outro, ou simplesmente, para não causar espanto, diante de tais confissões. Há outros ainda que encontram sujeitos que minimamente os compreendem e se vinculam em um relacionamento conjugal, mas permanecem solitários em seu sentido estrito - o outro ali serve para lembrá-los da parte humana mais costumaz e auxiliá-los a viverem no mundo onde o homem é apenas humano, mas sua agonia prossegue, natural e indigesta. Há ainda os malfadados, que finalmente encontram aquele indivíduo que os compreende em gênero, espécie e propriedade, fornecem respostas, aparentam ser o próprio "lar perdido", mas na vivência, mostram-se completamente insanos, e não raras vezes, justamente por refletirem tão bem a nós mesmos, tornam-se nossa própria perdição, resultado de uma inclinação particular viciosa e sedutora que nos é tão conhecida, porque, essa é a verdade: ser nenhum apasiguará esse tormento que não seja o próprio Deus.
Uma interessante metáfora ao ser humano poderia ser dada pelo mito de Quiron, o ser metade homem, metade cavalo, que herdou os princípios e a sabedoria do pai, mas também a impetuosidade da fera. Quiron, que era um sábio e estudioso, um dia foi ferido acidentalmente na coxa, pela flecha envenada de seu amigo, Hércules. O desespero e a busca para apaziguar tal dor eterna (visto que era imortal), fizeram de Quiron um curandeiro implacável que a todos podia curar e prestar auxílio, expurgando as dores dos outros, mas a si mesmo, apesar das constantes buscas, nunca pôde ajudar. Até ser, por misericórdia dos deuses, elevado ao céu e transfigurado na constelação de Sagitário. Pensei ser relevante trazer esse mito, considerando que o homem intelectual, por vezes assemelha-se frontalmente a essa figura, um ser, parte benevolente, parte tempestuoso, por vezes, tentado ao hedonismo mundano, ao mesmo tempo que afligi-se para buscar respostas aos questionamentos que ecoam de sua alma aflita, esgueirando-se por entre os livros e entre tudo que parece comportar um mínimo fulgor divino.
Longe de mim querer dividir "intelectuais" do resto dos homens, até porque, a maior diferença é que somos medíocres com licença poética, porém, precisava frisar que existem homens que enfrentam certas angústias que não são expressas em uma vivência cotidiana, não se refletem na dor da carne, na doença, na fome ou na violência, mas estão contidas na alma.
A verdade é que, podemos bem conviver com as angústias de nossa alma, pois esse é o propósito com o qual deixou-nos Deus, enxergarmos quão vil é nossa existência se comparada ao que é supremo, até que nos unamos à sua magnitude. E, até que tudo finalmente se cumpra, estamos fatalmente "condenados" a nos atrair por tudo que é grandioso, Summum Genus¹, do alto de nossa Infimma Species², para lembrar-mo-nos, todos os dias, que um dia, já estivemos lá, ao alcance de todas essas coisas, mas por nossos erros, fomos afastados. Teremos sempre inclinação à Verdade, pelo amor que Deus colocou em nós para olharmos o infinito de frente e não o temermos, mas, também, sempre teremos a certeza de que não o alcançaremos completamente. Afinal, como bem dito pelo doutor Angélico em seu leito de morte: "Tudo que escrevi, parece-me palha, perto do que vi".
(1) Mais alta extensão do Ser, gênero superior. (Trivium)
(2) Mais baixa extensão da espécie (Trivium).
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