De forma costumeira, acordei, organizei algumas coisas e fui fazer um chá. Não demorei a perceber que uma de minhas chaleiras tinha o cabo frouxo e corri logo a trocar pela que estava intacta. Logo me ocorreu um pensamento "preciso consertar essa panela", mas não demorei muito a desanimar, "onde eu poderia? Ninguém mais faz isso hoje em dia". Isso, o quê? Poderia alguém indagar-se. Trabalhar consertando panelas? Não - consertar algo. Em geral, as pessoas só compram outra.
Noutra época, longe de toda "facilidade" e "versatilidade" do mundo moderno, que muitas vezes, mais se poderia chamar de "descartabilidade" (em um uso bastante alongado da palavra para não usar termos como "fútil" e "superficial"), era comum que houvessem profissionais específicos para manterem com as pessoas, ainda por bons longos anos, os mesmos objetos que sempre tiveram, os quais, em geral, também eram fabricados já predispostos a esse fim.
Remendadores de estofados, alfaiates preparados para a costura de antigos ternos e vestidos que se desgastaram com o tempo, sapateiros detalhistas e exigentes, restauradores de livros, relojoeiros e tantos outros, que, como os consertadores de panela, utilizavam da necessidade de fazer das coisas velhas, novas outra vez, para seu sustento. Realizavam seu ofício, mas sem que os objetos perdessem a essência do que já foram, justamente porque os donos viam seu uso imprescindível e preferiam continuar utilizando-os da mesma forma, até que não mais houvesse possibilidade. Alguns, passavam através de gerações, por serem objetos dotados de história e ricos em tradição e simbolismo.
Esse é um caso curioso, não apenas, é claro, por objetos. Em uma cultura onde tudo precisa ser novo e imediato, onde existem tantas formas de conseguir algo novo, no mercado, ou nas relações, "renovar" não está mais no vocabulário.
Parece antiquado ou mesmo, de forma pejorativa, sinal de indigência, tentar renovar as coisas. Nas relações, essa tentativa é vista como estupidez, "estar à mercê" ou dependente de alguém, ser um ébrio baixo estimado, simplesmente por persistir longos anos ao lado de alguém, apesar dos impasses. Quando existem tantas opções no catálogo virtual em que se tornou o mundo, fica praticamente impossível não "descartar" o velho e procurar o novo.
No entanto, isso vai além da pura e simples curiosidade humana, é reflexo de um certo egoísmo, mesclado à presunção, quase imperial, de poder traçar quantas histórias se queira e de que os fragmentos deixados por desilusões, perdas de amizade e quebras de vínculos familiares, são apenas parte de todo o conglomerado da experiência humana bem vivida e "preenchida" de eventualidades - como se envelhecer solitário, esquecido e desvanecido da própria história fosse um mérito ou uma virtude.
Não se pode correr da urgência natural humana de ser um indivíduo além do próprio tempo. A alma humana é eterna e justamente por isso, clama a necessidade de perseguir o infinito, mesmo após a partida terrena. O legado não é um objetivo apenas dos presunçosos, qualquer indivíduo sincero consigo e com sua própria existência, confessa a si mesmo que teme por ser esquecido.
A construção desse legado ocorre, justamente, à medida em que se vive histórias concisas, com experiências concretas frutíferas e não apenas meros eventos ocasionais estéreis e precipitados.
O legado não é unicamente, ser conhecido mundialmente por determinado feito, mas também, ser lembrado de forma atemporal, em um retrato preto e branco, ao lado de uma vasta família, após ter batalhado para ensinar um ofício aos seus, ou com muito esforço ter criado e ensinado bons valores a sua prole, amado sua esposa e com ela ter envelhecido. Pois, exatamente como um legado, essa história não pode ser esquecida, será passada a muitas gerações, enquanto contam os feitos do "homem valoroso que era meu tataravô", por ser uma história que valeu a pena ser lembrada e que marcou beneficamente a vida de outros indivíduos. No mundo moderno, as histórias que se ouvem, assemelham-se mais a um livro de queixas ou crônicas regionalistas sobre barracos de família, onde "a família de fulano é devedora há tantas gerações", "meu bisavô fugiu e abandonou minha bisavó por uma senhorinha lá qualquer" - e isso, quando se conhece a história. Já que, para as pessoas desse tempo, supostamente, não é importante fazer história para "os outros" ou aos olhos dos outros e sim, para si mesmo. O medo do "julgamento" e de que os outros classifiquem sua própria existência como infeliz e descartável, tal como fez a outros, é maior que o sacrifício e a dignidade exigidos pela maturidade, e faz com que finjam não se importarem aos julgos externos e vivam como mercenários, quando em verdade, é aos próprios pesares e aos próprios fracassos que temem.
Tal como as propriedades intrínsecas que são exigidas ao material de uma panela, para que seja bem construída e não facilmente descartada, uma vida que revela a eternidade da alma humana em sua existência física, é aquela que se eterniza através das próprias virtudes cultivadas, da persistência e convicção na inclinação de fazer as coisas funcionarem, independente dos impasses que se apresentem. Mas, diferentemente das panelas, que, apesar de seu conserto, podem enferrujar e perder-se com o tempo, a existência humana é perene, e para ajustá-la à integralidade da máxima volitiva cristã "que se faça aqui na Terra, assim como no céu", é necessário um conserto de si mesmo e através de si mesmo. Não serão terceiros que farão tais escolhas, e nem mesmo a eles compete arcar com as consequências de nossa decisão, se não, a deles mesmos.
Por fim, uma vida cheia de "experiências e significados", não é uma vida onde passaram tantas relações que mal se podem contar, onde, "a felicidade em si mesmo", foi maior que o perdão aos familiares, ou a curiosidade por "novas experiências", foi maior do que a vontade de criar experiências fidedignas ao lado de um verdadeiro amor.
A máxima é, não deixar-se seduzir pelo tempo das frivolidades - consertar as panelas, antes de descartá-las, afinal, quantas serão necessárias em uma vida inteira até que na última, se perceba o verdadeiro valor da primeira?
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