Finalizada a primeira parte do livro "A Rebelião das Massas", de Ortega y Gasset, um influxo de reflexões tomou-me a mente.
Em brevíssimo resumo sobre os ditames da obra, explico que, Ortega traça considerações acerca do "novo homem" de sua época, ao qual imprime o sugestivo nome "homem-massa". Esse homem-massa, que acredita ter direitos onipontes, é também o mesmo que abdica-se diante de suas escolhas individuais, deixando-as a cargo de um poder estatal e, mimado por seu tempo, julga serem todos os artífices tecnológicos de que dispõe, naturais e perenes, como qualquer outro ente verdadeiramente natural, apagando toda a história civilizacional de sacrifício até ali.
Ortega não errou, pelo contrário, adiantou muito do que viria a ser, a era moderna, algo que poderia facilmente chamar-se, o "tempo da aminésia coletiva". À época de Ortega (século XIX), o homem ainda fazia certo esforço para esquecer-se de suas obrigações com o tempo - as guerras, o processo de descobertas, as "revoluções políticas" - tudo que trazia as antigas inovações era tortuosamente jogado para debaixo do tapete histórico, no intuito de fazer com que o homem pudesse simplesmente usufruir das benezes de seu tempo presente sem os pesados olhos dos antepassados condenando-o, e, sem que pudesse sentir o primado da própria inutilidade.
Esse esforço não foi em vão, concretizou-se o tempo em que o homem não mais necessita esforçar-se para esquecer suas origens, ele simplesmente não as têm, foram apagadas, juntamente com qualquer antigo traço civilizacional. Agora, mesmo que intuitivamente (a partir de natureza instintiva e puramente empírica), começa a finalmente notar que algo está errado, como aquele que vagueia, errante, por uma estrada qualquer, e em um lapso de consciência questiona-se "para onde estou indo?", "de onde vim?", e olha ao redor vê apenas placas sem indicação, onde todas parecem levar para diferentes caminhos, nenhum deles parece correto e nada lhe indica que sejam falsos. Prossegue então, em um tatear afligente, na busca de qualquer informação orientativa.
E então, a encontra. Não uma real orientação, claramente. Mas quem poderia notar a deturpação de algo que nunca conheceu? Apega-se então, a tudo aquilo que possa representar um mínimo traço de cultura ou símbolo que lhe dê significado para uma vida tão insalubre e paupérrima que parece ter surgido do nada, sem raízes com absolutamente coisa alguma - o sujeito niilista do século XXI, veio do pó, ao pó retorna, vive no pó ainda estando vivo - ele não possui alma que lhe preocupe, tampouco almas antigas para ascender incenso. Nesta frivolidade, sem menor esmero heróico digno de nota, se produz sua ruína.
Pobre de entendimento e sentido, o homem aminesiado, dá então, ouvidos a quem, em tempos de sanidade, nunca teria voz - "artistas" néscios , "influenciadores" digitais que não saíram da fase púbere, personalidades de reality shows - indivíduos que, caindo na eterna falácia do argumentum ad verecundiam, não fosse a sorte de haverem nascido em época tão desgovernadamente parva, seriam - não apenas notados com estranheza e repugnância, mas - completamente banidos do convívio social, pelas tolices e perversidades que pronunciam.
Mas, estamos no século do esquecimento, onde a aminésia coletiva instaurou-se por completo e a cultura real não mais integra a sociedade. Os programas de tv, agora também de internet, ganham vez na formação de pensamentos e opiniões do populacho, os filmes são as novas fábulas, as programações mais fúteis e personagens mais irrelevantes respaldam o imaginário mítico. Os antigos Ulisses e Penélopes transformaram-se em Enzos e Valentinas, enquanto as mídias ganham cada vez mais poder de influencia e arquitetura social.
Dessa forma, também, o primitivismo condensado de algumas subculturas ganha ares de requinte - incultura de favela, religiões de matrizes duvidosas, promiscuidade, infanticídio, aumento de maternidade solitária, paternidade desconhecida, estilo de vida hedonista e desprezo pelo sentido de legado - agora passam a integrar o cardápio cultural da massa disforme, sempre pronta a receber uma fôrma pútrida que a modele.
A massa, que, por natureza é desaculturada, cria dentro de si quem elege para guiar seus "valores" já inexistentes, fazendo um movimento retroativo - o indivíduo sem cultura criado na sociedade sem cultura distribui incultura para todos os outros inculturados.
E a arrogância moderna não tem limites, cuspindo no mínimo espectro que possa se lembrar, do que um dia foi civilizado. A mesma massa, que elege nomes idênticos para seus filhos, num surto de aniquilação coletiva de criatividade, preferindo a repetição e o mimetismo como forma de conteúdo, condena os antepassados, acreditando serem produto de seu antigo tempo, e que, por isso, devam ser desprezados.
A verdade é, o homem moderno é inábil com critérios de julgamento, porque, sem uma bússola cultural que o direcione, a inércia é seu único caminho. Dessa maneira, aceita de bom grado qualquer concepção que lhe ofereçam, menos aquelas que exigirão dele a ação. Em sua afunilada visão, procura se manter longe de tudo que considere muito complexo, muito antiquado ou muito laborioso, e exclui nesse ato, tudo que é valoroso.
É por isso que, ainda que vagamente o homem fruto da amnésia de nosso tempo ressinta a falta de sentido, ele ainda é satisfeito com a oca integração massífica que faz parte, onde pode levar uma vida modesta, tendo referências triviais, buscando alguns prazeres, sem muito refletir sobre coisa ou outra, sem muito envolver-se com nada profundo; sem preocupar-se se algo é útil ou prazeroso - as únicas duas instâncias de critério que conhece. E mesmo assim, ainda podendo se autorgar de "o homem mais douto de todas as eras".
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