Entre todas as virtudes cardeais, a virtude da iustitia - ou justiça - é a digna de maior atenção; não puramente pela extensão de processos a que pode ser aplicada, mas sobretudo, pela perversão ou quase extinção de seu conceito original e perpétuo.
A virtude da iustitia, em poucas palavras, diz respeito à virtude do "dever para com o outro", e tem sua fonte primordial na ação da vontade de seu agente. Nas palavras do Angélico "O sujeito da justiça é a vontade, que é o apetite racional (...)"¹. "O objeto ou matéria da justiça são os atos pelos quais o homem tem relação, não apenas consigo mesmo, mas com outrem"². Nesse aspecto, a justiça move-se pelas dívidas às quais somos vinculados. À medida que uma necessidade se manifesta, somos chamados à restitutio (restituição) perante esse ato para cumprir a justiça, seja em situações de agravo, onde alguém é lesado, material ou fisicamente, seja para encontrar novamente aquilo que foi perdido. Ela é então, a constante obrigação, o dever ou a dívida da justiça em relação ao outro.
Mas que quer dizer exatamente esse débito e qual a necessidade de rememorar aqui seu significado essencial?
Todos os seres criados, de constituição intelectiva (e por isso, racional), estão em constante débito com seu Criador, não unicamente pela condição natural de criados - e por isso, subordinados, mas, também, pela queda desordenadora inicial, que infligiu à alma um débito perene.
À medida que as criaturas são à imagem e semelhança do Divino, a similaridade implica a observância de uma parte da dívida de uns para com os outros, como criaturas; mas jamais de Deus para conosco, o Qual sustém a si mesmo, como dito por Sto. Tomás de Aquino "dá a si mesmo o que lhe é devido"³, se auto sustém.
Assim, presume-se também que o débito exige equidade - para respeitar a ordem do "devido" é necessário que a relação faça-se, portanto, com os iguais na hierarquia natural - nessa caso, o homem para com seus semelhantes em especificidade. Esclarecido esse aspecto, volta-se à questão inicial. Tendo o ser humano está em dívida para com Deus, e consequentemente, para com seus semelhantes, é necessário então, que atue em sentido de cumprir com esse dever, no sentido de reparação da dívida.
O dever patenteia-se na manifestação dos atos bons humanos, que podem atuar ordenando a relação do ente social (indivíduo) com seu semelhante (iustitia comutativa - justiça de permuta), ou seja, de cada indivíduo com cada indivíduo (ordo partium ad partes - das partes com as partes); através da relação entre a comunidade com cada membro integrante dela (iustitia distributiva - justiça de distribuição), nesse caso, a relação do todo social com cada um (ordo totus ad partes - do todo com suas partes) e através da ordenação da relação dos membros sociais com o todo social (iustitia legalis; iustitia generalis - justiça legal; justiça geral), sendo aqui, a relação de cada um com o todo social (ordo partium ad totum - das partes com o todo)⁴.
Considerando essa estrutura de dever, não é difícil compreender como a concepção de justiça foi deturpada e esquecida na era moderna.
O homem atual passou a considerar a expressão da conduta de justiça como meramente uma escolha de liberalidade (aquilo pelo qual se doa sem a obrigação de justa devolução)⁵. Entretanto, tal atitude, marcada pela inversão do significado de justiça, implica a dissolução das relações do homem para com seu semelhante e presumivelmente, para com Deus. A irresponsabilização dos próprios atos, e a conjectura de não deter em si subordinação a qualquer tipo de ordem, faz com que a natureza da ação humana não alcance seu fim na execução do Bem. Ocasionando, não unicamente um ato mau passivo diante da obrigação de restituição, mas, notadamente, um ato mau ativo, com a perversão e a desestabilização do juízo, adormecendo a capacidade de identificar o que é justo ou injusto.
Na tentativa de emancipar-se da verdadeira concepção de justiça, tão laboriosa e ao mesmo tempo, tão verdadeiramente categórica, o homem moderno criou para si mecanismos de fuga como "alternativa" a tal processo - as ideologias - que não poderiam ser menos malfadadas.
Uma dessas ideologias modernas que rapidamente conquistou a afeição de espíritos ávidos por uma tal "justiça", pode ser chamada de socialismo.
Trazendo como força motriz a revolta de uns contra os outros e a exigência diante do corpo social sem um retorno individual; o socialismo tenta transpassar a imagem de filosofia ascética e justa sem que de fato exista nessa relação uma justiça real, que jamais poderia ser livre de equidade entre os homens. Frederico Ozaman, postulou acerca dessa característica, quando o socialismo era apenas um gérmen - nas palavras dele através de Gustavo Corção:
"Como todas as doutrinas que perturbaram a paz do mundo, o socialismo só tirou sua força de muitas verdades misturadas com muitos erros. Essa confusão lhe empresta uma feição de novidade que causa admiração nos espíritos simples e fracos: conseguiremos afastar toda a periculosidade de seus ensinamentos quando neles mostrarmos, de um lado, as antigas verdades que, para surgirem, não esperaram o sol do século dezenove, e de outro lado, os erros seculares tantas vezes julgados pelas consciências dos homens e pela experiência dos povos. Já é tempo de proceder à triagem e de retomar o que é nosso, isto é, as velhas e populares ideias de justiça e caridade, e de fraternidade"⁶.
Do mesmo modo, outras ideologias não escaparam à natureza de perversoras da justiça, como o próprio liberalismo, que intenciona emancipar o homem das obrigações transcedentes, ignorando qualquer incumbência que não as impostas exclusivamente pelas relações materiais, rejeitando por consequência a existência divina e as reais obrigações com o dever. Nas palavras do papa Leão XIII:
"Ora, o princípio fundamental de todo racionalismo é a soberania da razão humana, que, negando a obediência pela razão divina e eterna e declarando-se independente, torna-se o princípio supremo, fonte exclusiva e único juiz da verdade. Esta é a afirmação dos mencionados seguidores do liberalismo; Segundo eles, não há autoridade divina a ser obedecida na vida prática; cada cidadão é sua própria lei. Daqui surge aquela dita moralidade independente, que, além da vontade, sob o pretexto da liberdade, da observância dos mandamentos divinos, concede ao homem licença ilimitada. As consequências finais dessas declarações, especialmente na ordem social, são fáceis de ver. Porque, quando o homem está convencido de que não tem superior sobre si mesmo, a conclusão imediata é colocar a causa eficiente da comunidade civil e política não em um princípio externo ou superior ao homem, mas no livre arbítrio de cada um; derivar o poder político da multidão como fonte primária. E assim como a razão individual é para o indivíduo em sua vida privada a única norma reguladora de sua conduta, da mesma forma que a razão coletiva deve ser para todos a única regra normativa na esfera da vida pública. Daí o número como força decisiva e a maioria como criador exclusivo do direito e do dever"⁷.
De ambas as ideologias citadas desenharam-se diversas outras sob o mesmo molde de perversão e fulga. De todas as maneiras, facilmente compreende-se a razão pela qual a justa medida não é um enclausuramento da ação, mas antes, a liberdade em sua maior extensão - a realização do Bem e ascenção da alma humana dentro dos limites máximos da realidade.
Ao olhar para um ato particular e admitir nele a realização não unicamente para si, mas como dever para com os outros - dever de caridade, dever de integridade, dever de justiça - admite-se também a subordinação a Deus.
"Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças. O segundo mandamento é este: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes" (Mc 12:30-31.)
Por último, e não menos importante, há também uma esfera do dever cívico (commune), que se manifesta nas ações direcionadas ao social de forma criativa. É através da dívida infusa que o homem sempre se move no ímpeto de realizar atividades ao meio, inclina-se ao labor manual, à manifestação criativa da arte ou da literatura - sente-se compelido a prestar serviços ao bem comum, manifestar a Verdade que está circunscrita em sua alma, e somente dessa forma reconhece que há real valor em sua condição humana, que se materializa através da ação. Extinguir o significado perpétuo da justiça também perturba a ação do homem, que passa a não ver sentido em suas ações.
Que jamais seja esquecido o real sentido:
"A justiça, é um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um, o que lhe pertence"⁸.
Referências
¹ ² AQUINO, St. T. Summa Theologica, Questão 66 - Da Igualdade das Virtudes. Art. IV, pg. 1328.
³ ⁸ AQUINO, St. T. Summa Theologica, Tratado Sobre a Justiça, Questão 58 - Da Justiça, Art. I - XII, pg. 2099.
⁴ PIEPER, J. Virtudes Fundamentais - Citando Summa Theológica - Bases Formais da Justiça, pg. 108-109.
⁵ AQUINO, St. T. Summa Theologica, Da Liberalidade, Questão 117, pg. 2452.
⁶ CORÇÃO, G. O Século do Nada, pg. 152.
⁷ LEÃO XIII LIBERTAS PRAESTANTISSIMUM, Sobre Liberdade e Liberalismo. Disponível em: http://www.vatican.va/content/leo-xiii/es/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_20061888_libertas.html
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