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A Cidade das Damas - fragmento

 

Um dia, estava eu, como de hábito, com a mesma disciplina que rege minha vida, recolhida em meu gabinete de leitura, cercada de vários volumes, tratando dos mais diversos assuntos. Com a mente cansada por ter passado um bom tempo estudando sentenças complexas de tantos autores, levantei a vista do texto, decidindo deixar, por um momento, assuntos mais sutis para deleitar-me com a leitura de alguma poesia. E, com esse intuito, procurando a volta algum livrete, caiu entre minhas mãos um certo opúsculo que não me pertencia, mas que alguém havia deixado ali com outros volumes por empréstimo. Abri-o, então, e observei no título que se tratava de Mateolo. Pus-me, então, a rir, pois ainda não o havia lido, mas sabia que, entre outros livros, esse tinha a reputação de falar bem das mulheres! Pensei então que, para me divertir um pouco deveria percorrê-lo. Mas, a leitura mal havia começado, minha mãe chamou-me à mesa. Chegara a hora do jantar. Comprometi-me, assim, a retornar no dia seguinte, abandonando-a por hora. Na manhã seguinte, retornando como de costume ao meu gabinete, não esqueci de colocar em prática minha decisão de retornar à leitura do livro Mateolo. Pus-me a lê-lo. Avancei um pouco a leitura. Mas, o assunto pareceu-me tão pouco agradável, – aliás, para qualquer um que não se deleita com calúnias – e sem contribuir em nada à edificação moral nem à virtude, considerando ainda a distorção da linguagem e dos temas por ele tratados, folheei-o aqui, ali, li o final, e, em seguida, abandonei-o para voltar a outros estudos mais sérios e de maior utilidade. Porém, a leitura daquele livro, apesar de não ter nenhuma autoridade, suscitou em mim uma reflexão que me atordoou profundamente. Perguntava-me quais poderiam ser as causas e motivos que levavam tantos homens, clérigos e outros, a maldizer as mulheres e a condenar suas condutas em palavras, tratados e escritos. Isso não é uma questão de um ou dois homens, nem mesmo só deste Mateolo, – a quem não incluiria entre os sábios, pois seu livro não passa de uma gozação – mas, pelo contrário, nenhum texto está totalmente isento disso. Filósofos, poetas, e moralistas, e a lista poderia ser bem longa, todos parecem falar com a mesma voz para chegar à conclusão de que a mulher é profundamente má e inclinada ao vício. Com essas coisas sempre voltando insistentemente à minha mente, pus-me a refletir sobre minha conduta, eu, que nasci mulher; pensei também em outras tantas mulheres com quem convivi, tanto as princesas e grandes damas, quanto às de média e pequena condições, que quiseram confiar-me suas opiniões secretas e íntimas; procurei examinar, na minha alma e consciência, se o testemunho reunido de tantos homens ilustres poderia ser verdadeiro. Mas, pelo meu conhecimento e experiência e por mais que examinasse profundamente a questão, não conseguia compreender, nem admitir a legitimidade de tal julgamento sobre a natureza e a conduta das mulheres. Mesmo assim, continuei pensando mal das mulheres, dizendo-me que seria muito grave que tantos homens ilustres, tantos doutores importantes, do mais alto e profundo entendimento, com tanto esclarecimento – pois acredito que todos tenham sido assim – pudessem ter falado de maneira tão enganosa, e em tantas obras. Era quase impossível encontrar um texto moral, qualquer que fosse o autor, sem que me deparasse com algum capítulo ou cláusula repreendendo as mulheres. Apenas essa razão, breve e simples, fazia-me concluir que tudo isso havia de ser verdade, apesar do meu intelecto, na sua ingenuidade e ignorância, não conseguir reconhecer esses grandes defeitos em mim própria nem nas outras mulheres. Deste modo, eu estava me baseando mais no julgamento de outrem do que eu mesma acreditava e conhecia. Estava tão profunda e intensamente mergulhada naqueles sombrios pensamentos que parecia estar como alguém em estado de letargia. À mente, vinha-me um número considerável de autores, e, como uma fonte jorrando, ia reexaminando-os um a um. No final, cheguei à conclusão de que, criando a mulher, Deus tinha feito uma coisa bastante vil. Espantava-me assim que um artesão tão digno pudesse ter realizado uma obra tão abominável, na qual, segundo a opinião daqueles autores, residiam todos os males e vícios. Completamente absorta por essas reflexões, fui inundada pelo desgosto e pela consternação, desprezando-me a mim mesma e a todo o sexo feminino, como se tivéssemos sido geradas mostros pela natureza. Lamentava-me assim:

"Ah, Deus! Como é possível? Como acreditar, sem cair no erro, que tua infinita sabedoria e perfeita bondade tinham podido criar alguma coisa que não fosse completamente boa? Não é verdade que criaste a mulher com deliberado propósito? E, desde então, não lhe deste todas as inclinações que gostarias que ela tivesse? Pois, como seria possível teres te enganado? E, no entanto, eis tantas acusações graves, tantos decretos, julgamentos e condenações contra ela! Eu não consigo entender essa aversão. E, se é verdade, meu Deus, que tantas abominações abundam entre as mulheres, como muitos o afirmam – e, como tu mesmo dizes que o testemunho de vários garante a credibilidade – por que não pensar que tudo seja verdade? Que pena! Meu Deus! Por que não me fizesse nascer homem para que minhas inclinações estivessem a teu serviço, para que em nada me enganasse, para que eu tivesse esta grande perfeição que os homens dizem ter? Mas, como tu não quiseste, como não estendeste tua bondade até mim, perdoe minha negligência ao te servir, Senhor Deus, e não te descontente, pois o servidor que menos recebe de seu senhor, menos é obrigado a servi-lo".

Com essas palavras e outras mais, propaguei minhas lamentações a Deus, tristemente aflita, na medida em que minha loucura desesperava-me o fato de Deus ter me posto em um corpo feminino.


Abatida por esses pensamentos tristes, eu baixava a cabeça de vergonha. Os olhos repletos de lágrimas, as mãos na face, apoiava-me no braço da poltrana, quando repentinamente vi cair no meu colo um feixe de luz, como se fosse um raio de sol penetrando ali, naquela hora, então despertei-me em sobressaltos, como quem acorda de um sono profundo. Erguendo a cabeça para olhar de onde vinha aquele clarão, vi elevarem-se diante de mim três damas coroadas, de quão alta distinção. O esplendor, que de suas faces emanava, arrojava-se sobre mim, iluminando todo o compartimento. Inútil perguntar se fiquei deslumbrada, sobretudo porque as três damas conseguiram entrar, apesar das portas estarem fechadas. Temendo que fosse alguma visão tentadora, fiz o sinal da cruz na testa, tão grande era meu medo. 

Foi então que a primeira das três damas, sorrindo, dirigiu-se a mim nesses termos:

"Cara filha, não tenhas medo, não viemos aqui para te fazer mal, ou te prejudicar, mas para te consolar. ficamos muito comovidos com teu desespero e queremos retirar-te desta alienação; ela te cega a tal ponto de rejeitares o que tens convicção de saber, para acreditar em algo que só conhece através da pluralidade de opiniões alheias. Pareces com aquele parvo, cuja história é bem conhecida, que, tendo adormecido no moinho, foi adornado com roupas de mulher e que, ao acordar deu crédito às mentiras daqueles que lhe caçoavam, afirmando que ele havia se transformado em mulher, ao invés de recorrer a sua própria experiência. Mas, bela filha, o que aconteceu com teu senso? Esqueceste que o ouro é refinado na fornalha; e ele não se altera, nem muda suas características; pelo contrário, quanto mais ele é trabalhando, mais fica purificado. Não sabes que as melhores coisas são discutidas e debatidas? Se considerares a questão suprema, que são as ideias, quer dizer, as coisas celestiais, percebes que mesmo os maiores filósofos, aqueles que tu invocas contra teu próprio sexo, não conseguiram distinguir o certo e o errado e se contradizem e se criticam sem cessar, como tu viste em Metafísica de Aristóteles, no qual ele critica e refuta, igualmente, as opiniões de Platão e de outros filósofos, citando-os.

E presta atenção que Santo Agostinho e outros doutores da Igreja fizeram o mesmo em certas passagens de Aristóteles, considerado o príncipe dos filósofos, e a quem devemos as mais altas doutrinas da filosofia natural e moral. 

Ora, pareces acreditar que tudo o que dizem os filósofos é digno de fé e que eles não podem se enganar. Quanto aos poetas aos quais te referes não sabes que utilizam frequentemente a linguagem figurada, e que, muitas vezes, deve-se compreender justamente o contrário no sentido literal? Pode-se, a princípio, atribuir-lhes a figura de retórica chamada antífrase, dizendo, por exemplo – como bem sabes – que fulano é mau, deixando entender que ele é bom, ou igualmente o contrário. Recomendo-te então que tires proveito de tais escritos que recriminam as mulheres, voltando-os a teu favor, quaisquer que fossem as intenções deles, porque são várias as coisas que, tomadas ao pé da letra seriam pura heresia. Quanto à diatribe contra o casamento – que, no entanto, é um estado digno, santo e de acordo com as leis de Deus – a história demostra claramente que a verdade é completamente contrária do que afirmam, procurando atribuir à mulher todos os males. Não se trata apenas dessa obra de Mateolo, mas de tantas outras, em particular o Roman de La Rose, que goza de um crédito maior em razão da autoridade maior de seu autor. 

Ora, encontrar um marido que tolere que sua mulher tenha um império tal, a ponto de poder descarregar sobre ele as ofensas e injúrias que todas as mulheres estão acostumadas a ouvir? Mesmo que tenha lido nesses livros, duvido que tenhas visto com teus próprios olhos, pois não passam de propósitos vergonhosos e mentiras patentes. Concluindo, minha cara Christine, digo-te: foi tua ingenuidade que te levou a esta presente opinião. Concentra-te, retoma tua consciência e não te preocupas mais com essas tolices; sabes que uma difamação categórica das mulheres não conseguiria antingí-las, mas sempre volta contra seus autores".

Foi assim o discurso proferido por esta elevada dama.

Excerto extraído do livro "A Cidade das Damas", Christine de Pízan.

 

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