Certa manhã flagrei-me atônita, em pé, no certeiro ângulo que me permitia ver a janela de meus aposentos, típico prédio de bairro, de frente para trânsitos, comércios e uma ruela que vez ou outra me dispunha a debruçar-me para observar o pouco movimento. A casa da frente, que há alguns meses havia perdido sua provecta inquilina para uma de nossas recentes gripes pestilentas era agora pintada por um senhor franzino e de baixa estatura. Com certo primor ele lapidava a tinta sobre as paredes, que antes amareladas em bege pêssego e disformes, agora tomavam tom de rubro vivo. Mesmo nesse estado absorto, não demorei a perceber que o interesse não convidava unicamente a mim – prontamente surgiu uma senhorinha com estatura equiparável, de cabelos grisalhos amarrados medianamente em rabo de cavalo, com uma sacola nos antebraços, parecia balbuciar qualquer coisa para o trabalhador enquanto fitava atentamente o vai e vem do rolo entumecido de tinta. Naquele instante percebi que algo nos conectava. Era uma desconhecida, certamente, e longe de perceber uma figura esguia de cabelo esvoaçante entreolhando pela alta janela atrás de si, tão distraída que estava com sua própria observação; ainda assim, nos senti ligadas por um hipnótico fenômeno - a curiosidade. Olhávamos para o mesmo evento e arrisco dizer, com a mesma disposição analítica.
O ritmo no qual andam as ruas de cidadelas é o paraíso epicurista
para qualquer fanático observador ou mesmo para os mais desatentos, a vagareza oferece
os melhores eventos para uma lente apurada – não coincidente, os modernos
doutos, especificamente aqueles atrás de frascos de laboratórios fascinam-se pelas
tais experiências à vácuo e toda miríade de episódios que perceptivamente retardam
o tempo – os sentidos procurando conexão externa ao máximo que se pode
apreender. Se os sentidos são deveras morosos para acompanharem o ritmo dos
fenômenos, que se façam os fenômenos lentos... bem, aqui isso não será
necessário.
A ausência de eventos significativos força o olhar para os
mais marginais e amplia sua magnitude – estamos diante da agregação de
memórias, ou um simples instante meditativo – observar a mudança é fascinante,
os olhos consomem a tudo quando, nesse ínfimo instante, de irrisórios homens,
tornamo-nos deuses. Observar é uma das aparições do poder.
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