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Curiositas - Uma Sina Episódica

Alegoria da Transciência - Antonio de Pereda (1634).

Adiei em demasia este momento, por acídia, quem sabe, talvez agitação? Ah, antes, por covardia. Não me leve a mal, caro leitor, quando quero tenho expertize na arte de fazer-me desentendida... não, não a mim, aos outros... Compreendeu? Bem, é dessa arte que estava falando. Sei dizer sem falar, expressar sem entregar e ceder sem doar, uma ilusionista de minhas inquietudes; ou seria uma maga de meus vocábulos? 

Antes que desprestensiosamente suponha que não chegarei a lugar algum, comprometo-me aqui, que ardam em chamas estas palavras caso não corresponda ao acordo, se, até o fim desta explanação eu não dispuser qualquer traço de compreensão. Não prometo, é claro, abrir-me por inteiro, que assim não seria motivo para que estivesse a discorrer tais penúrias, mas não espere disto um caos, o aviso inicial é apenas receio e de forma amistosa... um convite. Não dificultarei a assimilação deste conteúdo, como é meu costume discorrer em códigos quando quero me ocultar dos olhos afoitos, mas não deixarei translúcido. Ao leitor que se reconhecer, certamente será cristalino, estaremos em sintonia no mesmo curso comunicacional, dito isto, boa leitura.


Um costume que se aculturou entre os simplórias costumes dessa sociedade contemporânea na qual as profissões perpassam por sabatinas de diplomas, foi o de questionar os motivos pelos quais escolher esse ou aquele curso. Não adentrando na vasta enciclopédia de justificativas para as mais diferentes experiências de vida e preferências, atenho-me, quase sempre, a entregar minha resposta pronta - a curiosidade. 

O que me levou a exercer, e, por tantos anos, estudar a psicologia humana foi a pura e simples... curiosidade. Fosse pelo mundo, fosse pelas ciências, fosse por esse sujeito homem... a boa e velha motriz estivera ali fazendo-me companhia e excitando-me pela, sempre deslumbrante, viagem. Disto, dei luz a um vício e uma virtude: essa tal curiositas... temida e odiada entre os espíritos mais contidos, o que admito, com indiferença ou conformidade, não é meu caso.

Dispensável é, esclarecer que, no espírito faminto em que tal inclinação se manifesta de forma fluidamente natural, dificilmente seria contida e mantida sob as rédeas da profissão - o interesse, em verdade, funde-se à própria experiência do existir.

Também é presumível que, indivíduos com tais inquietudes (não a mera e simples curiosidade, mas aquela inebriante inclinação por conhecer), dificilmente deixam que algo passe despercebidamente, a menos é claro, que inclua-se na esfera do comum, esperado, convencional... e aqui se situa a mais nefasta angústia de tais espíritos - entre a imensidão de análises e a frequência dos acontecimentos se estabelece um padrão, o comum dá lugar ao tédio. Não que por si seja o vilão, mas em honestidade e integridade moral é necessário admitir-se que, por vezes, se torna um estorvo temperado pelo ânimo do dissabor niilista.

A insipidez do mundo... Nada de inédito, nada vinculativo.

Bem, nesse universo de previsibilidade é natural que uma centelha de dessemelhança mostre-se como um clarão relampiar em noite de lua nova, na qual tudo torna-se mais evidente.

Desse modo, quando certas espécimes inusuais se deixam conhecer, é difícil que não as reparemos - o tilintar dos sinos, o andar firme e veloz, a inquietude familiar, a leveza e o peso perfeitamente equilibrados, tal qual o ar e a terra temperada pelo fogo.

Ao deparar-se com qualquer dessas espécimes, rezamos para estar ensandecendo, para ter sido o cúmulo de uma visão concebida por nosso confuso e atormentado intelecto. Quando não se faz o caso, percebe-se o olhar, a interação, aquele interesse leve e contido que escapa por entre as pupilas. Alguns passos juntos e é o bastante para uma estranha atmosfera de gravitação usurpar todo foco, queremos orbitá-las.

Sem que nos apercebamos, de forma natural e instintiva, desejaremos seguir seus passos, acompanhar seu ritmo, que em suma, assemelhar-se-á tanto ao nosso, remetendo-nos àquele solitário momento em que não havia autocontenção pela obrigação de desacelerar os passos, apenas correremos por igual.

Passado o prenúncio inicial, é natural a tentativa do distanciamento, mas este encontro parecerá mais assombroso do que poderíamos admitir, talvez pela escassez de elementos, talvez por obra da curiositas; seja o que for, intrigará que um ser possa ter desperto aquela parte da atenção que se reserva aos poucos elementos considerados realmente valerem-na (no meu caso, antigos autores, senhores intelectuais e livros fabulosos).

O passar das folhas do calendário e o desvanecer das horas revelará aos poucos o que a intuição inicial havia captado, um raciocínio ao qual a compreensão não pareceu acessar inicialmente. Alguns seres humanos se atraem entre si pelas virtudes, outros, pelos vícios. E novamente lá estará ela, a curiositas, atinando contra nós.

Seja por conceber similaridades (que nos fascinam pela sede de identificação), seja por gritantes diferenças (que intrigam-nos pela necessidade de ordenação), quereremos aprofundar-nos, tal qual se prescrutam as proposições que abarrotam os tratados filosóficos, dissecar o ser em partes, comparar, contrapor, dispor à prova, submeter à validação, eduzir. A ironia certamente é atrair-nos por um universo declaradamente distinto ao nosso, quase refutativo... - mas, como habitualmente, indivíduos curiosos, verdadeiramente, anseiam por um confronto.

Naquelas expressões haverá um cosmos de possibilidades que escaparão à galáxia particular. O choque do embate produzirá a rendição, a couraça será partida e aquele mundo ordenado, rígido e impenetrável findará por, paulatinamente, se converter ao avesso.


Em virtude disto, particularmente, minha agonia é admitir que, usualmente, não me comovo, não me ligo a quase nada, não me conecto a coisa alguma, salvo certos fenômenos episódicos. Contudo, nesses momentos, torno-me vulnerável às minhas próprias armadilhas. 

Sinto-me, então, na obrigação de reconhecer, o que resta de fascinante na realidade é justamente a vastidão de impressões e movimentos de compreensão, que tornam os aparentemente ínfimos acontecimentos como estes lapsos de encontros, eminentemente esplendorosos.

A impressão que tais encontros produzem é capaz de proporcionar, em um curto espaço de tempo, a erupção de toda natureza de ação que esteve há muito mantida sob uma colcha de inércia.

Certamente é mais cômodo permanecer em um mundo estático e seguro de suas próprias fronteiras, não se atrever a colocar em cheque as torres da cidade; no entanto, quando o território habitado se torna diminuto diante do inevitável transbordar de transcendência da alma, todas as comportas correm o constante risco de virem ruidosamente à baixo. Repentinamente, aquilo que parecia impossível ao intelecto assimilar ou à razão agregar em nosso particular universo, será fragmento operante e essencial ao todo e, de modo estranho e inesperado, se arranjará perfeitamente. O que antes parecia irreconciliável passa a, unido, refletir a perfeita assimilação do todo.

De forma ousada me atrevo a dizer, quando ordenadamente recepcionada, a curiosidade pode oferecer muito do que, seguros e estáticos, jamais poderíamos alcançar. Se heroica ou vilã, unicamente o que fazemos dessa natural e infusa inclinação é que poderá elucidar.

Para não precisar convocar o excelso doutor, advirto, a curiositas de fato tem dupla natureza, mas essa ponderação, satisfaço-me ao aprofundar em momento mais oportuno... 

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