Não há como negar a existência de
certa fúria interna que assemelha-se a uma pura e despretensiosa descontração,
a tal “sublimação” humana. O humor tem seus mistérios, afinal. Não por acaso, o
teatro grego nos presentou com a manifestação de dois opostos estados humanos,
a tragédia e a comédia. A primeira diz respeito ao excesso de verdade, a
segunda, ao seu disfarce simbólico, o que explica o uso de máscaras nas
primeiras aparições artísticas e a viagem a um estado quase inocente de consciência.
Ah... uma troça à democracia, diziam alguns, pobres necessitados de excelência! Para mim, apenas mais uma urgência humana em escoar insatisfações de modo socialmente aceitável, ou mesmo, de rememorar aquele período no qual a ótica minimalista infantil possibilitava grandes abstrações. Dissequemos aqui, então, meus caros, o arquétipo do deus Momo, ou Μώμος (Momos), do grego “deboche”, considerado o deus do sarcasmo, da excentricidade, da loucura, “inesperadamente”, da criatividade e consequentemente, dos poetas e escritores, que ironia... (me inspire agora deus Momo, irei precisar).
Nos arquétipos dos oráculos, é possível encontrar a figura similar do "Tolo", "Louco", ou "Bobo", chamado arcano zero como primeira carta do tarô (ou última, como XXII), representa os inícios, o inesperado, a ousadia, a aventura e o conhecimento inexplorado, sempre acompanhado de um cão que lhe morde o calcanhar ou lhe arranha, como para manter-lhe longe de suas imprudências. Quem diria, sua figura assemelha-se em muito com o deus Momo.
A popular imagem de Momo com máscaras,
guizos e um cetro poderia dizer mais do que o bastante sobre essa figura
mítica, mas tomo a caridade de expor o que tenho em mente – o disfarce é necessário, pois se metamorfoseia, como um mago acrobata, equilibrando-se entre dois estados de
espírito, os sapatos em caracol assim como as vestes multicoloridas expressam o cafona e a rebelião às convenções. Os guizos fazem jus à distração, o alívio cômico tão buscado; o cetro
dá o tino imperial, afinal, tal figura assume o personagem do rei de quem faz troça, e agora, pode-se desvelar a origem natural dos bobos da corte, coroados pela história da
literatura com os poemas satíricos medievais e imortalizados na figura dos palhaços
de circo, aaaah o circo, é aqui que a magia acontece... literalmente.
Minha última visita a esses templos
misteriosos e incompreensíveis que restaram de nossos antepassados romanos, rendeu-me certa reflexão, a triste certeza de
uma antiga desconfiança – os circos estão desvanecendo.
Por trás das coloridas luzes,
cartazes e de toda mercenagem (o perdão da palavra), existe ainda, estampado
nessas personas circenses, a imagética do esplendor infantil, aquele tipo de
humor que suscita risadas por retratar nada mais que ocasiões banais, aquilo que atiça o riso sem longas explanações teóricas, que nos imprime e incita à determinada face da realidade apenas por ela ser o que é, implicitamente,
evocando milenares tradições, as quais enalteciam o homem em seu mais simples
substrato, apenas por ser humano. Os arlequins expõem as crises nas relações, os segredos, as
questões de violência, os riscos, o lidar com o inesperado, a ridicularização,
a vergonha e por que não dizer, a mais profunda indiferença aos rigores sociais?
Tais personagens, sobretudo palhaços,
não temem o ridículo, assumem a irreverência explorando as mazelas, os encantos,
as virtudes e os vícios para satisfazerem, através do cômico e do sarcasmo, a carestia
humana de brincar, desfigurando hierarquias, desfazendo-se dos bons modos. O que fora dos picadeiros é vexação, ali é estrelato, o medo
de exposição é inexistente e a comicidade do esdrúxulo dá lugar a uma fina
dança com a loucura entre arranjos e afiados improvisos, nada de normas aqui, fora às amarras! Essa loucura, que em
verdade se traduz em um primitivo estado de consciência no qual a inspiração é
autêntica e fluida, nos possibilita conectarmo-nos com um poeta interior quase
anárquico que ordena em sonetos o amplo espectro do caos, algo retratado por Brant em "A Nau dos Insensatos", mas sou definitivamente mais simpática à loucura do que ele.
O circo conserva essa faceta social
já há muito perdida que busca calamitosamente agarrar-se ao universo digital
moderno de “ciber-humoristas” – a necessidade de expurgar desassossegos diários,
transmutando-os em uma natureza infante e burlesca, ao passo que entretém e abre
ligação com aquele pequeno indivíduo interior a que chamam por criança. Entre
toda a necessidade de rigidez e seriedade exigidos cotidianamente nessa tal “maturidade”, aqui, encontra-se uma brecha sisuda que não requer uma só gota de álcool para excitar
o riso.
É pesaroso que tais espaços
tenham perdido seus holofotes e que precisem ampliar cada vez mais seu repertório
de “inovações” para que suscitem algum público. Esse fato denota que o pensamento
coletivo humano tem se distanciado cada vez mais daquele cientista indutivo que
todos somos quando crianças. Quanto maior a carência de conexão com os simples
acontecimentos cotidianos, maior a sensação de vazio existencial, daí a
necessidade de entorpecimento oferecido por outras fontes fugazes e não tão
singelas, como vídeos com menos de 30 segundos e stand-ups enfadonhos e monotemáticos.
A ironia é que espaços como os
circos possibilitem o desnudamento dos disfarces, o fascínio no olhar, o encantamento em cada mínima aparição, em jogos de luzes, cores e música. De forma pitoresca e quase juvenil, retiram-se as máscaras e, como
em um ritual coletivo, cultua-se o gozo aos mais absurdos eventos desse sarcástico
conglomerado de células, angústias, êxitos, dúvidas e transciência a que chamam
por vida humana. E que fechem-se as cortinas, o show terminou!
Comentários
Postar um comentário